Moon
“...Enquanto a confusão aumentava, um
senhor vinha se aproximando lentamente em seu traje sombrio. Usava um escuro
casaco sobretudo acompanhado de um grande capuz que lhe cobria parte do
rosto... O reverendo era um homem velho, mas de aparência forte. Ele tinha o
rosto fino com maxilares duros e olhos carregados. Costumava se reunir com as
crianças ocasionalmente ao pôr do sol e sempre lhes contava uma história... A
lua já brilhava um pouco mais forte
atrás do Reverendo quando um dos garotos quebrou o silêncio...”
Era final de
uma tarde de verão em Etion. O sol se punha com seus raios avermelhados no
longínquo horizonte do mar. As ondas se quebravam compassadas e se arrastavam
cada vez mais longe na orla da praia. Enquanto isso a lua nova surgia discretamente
como um sorriso amarelo no céu colorado. As crianças
jogavam bola na areia alguns metros acima. Wind recebeu a bola no campo
de ataque, ultrapassou o lateral com velocidade,
desviou do zagueiro e aproximou-se da zona de perigo para fazer o gol. Entre
ele e o goleiro ainda restava um defensor que corria em sua direção com vigor.
Wind escapou do último homem pelo lado e chutou cruzado. O chute saiu fraco e
rasteiro. Alguém tinha atingido Wind no rosto no momento da finalização. Começou
imediatamente uma discussão que durou algum tempo. Wind estava deitado no chão
enquanto Dorian sorria dizendo que não havia sido ele quem o acertou. Enquanto
isso dois garotos saíram na porrada. Thomas quis separar a briga e foi agredido por outros dois garotos. Wind
levantou-se e pegou Dorian pela gola da camisa. Enquanto a confusão aumentava,
um senhor vinha se aproximando lentamente em seu traje sombrio. Usava um escuro
casaco sobretudo acompanhado de um grande capuz que lhe cobria parte do rosto.
Ao enxergar o homem, Wind se distraiu e largou o
colega. Esse
descuido lhe custou um tapa, com a mão em forma de concha, bem no meio do
ouvido. Aquilo doeu e deixou Wind desorientado por um instante, mas em seguida
seu agressor estacou assustado e exclamou com a voz meio estrangulada:
- Reverendo
Moon!
As palavras foram curtas e não foram altas, mas foi o
suficiente para que todos os meninos ouvissem e esquecessem o que estavam
fazendo. John Lightner, que já havia liquidado dois, corou e abaixou a cabeça.
Wagner, o leitoso, foi o primeiro a se sentar.
Em seguida, Berry, Haven, Dorian, Thomas e todos os outros garotos foram se
sentando em frente ao homem sombrio.
O Reverendo
Moon caminhou entre os garotos no chão e deu um toque no ombro de Wind ao
passar do seu lado. O toque pareceu queimar-lhe o a clavícula como um ferro em
brasas, mas ele sabia que não havia sido um toque forte assim. Teria sido um
toque de repressão por ele ter sido o possível causador da briga? Ou seria isso
um toque amistoso? Ou ainda, seria um toque casual que o reverendo poderia ter
feito igualmente em qualquer outro da turma? Wind não conhecia muito bem o
reverendo, mas se tinha uma coisa que havia aprendido é que o homem não fazia
nada que não tivesse um significado. O reverendo era um homem velho, mas de
aparência forte. Ele tinha o rosto fino com maxilares fortes e olhos
carregados. Costumava se reunir com as crianças ocasionalmente ao pôr do sol e
sempre lhes contava uma história. Ele aparecia do nada, contava histórias
intrigantes e depois desaparecia por semanas ou meses. Em geral o reverendo
contava histórias que remetiam aos primórdios da velha Etion e mistérios
intrigantes sobre antigos e atuais moradores. Esses contos mexiam com o
imaginário das crianças e os faziam pensar em bruxaria, feitiçaria, fantasmas,
demônios, monstros, extraterrestes, e um sem número de coisas legais e
assustadoras.
Na última vez
que apareceu, o reverendo contou sobre algo que deu o que falar. Ele havia
falado sobre uma mulher muito má, que matava pessoas e roubavam-lhe os dentes.
Essa mulher era, além de tudo, uma espécie de fada, de um jeito meio torto. Isso não era, de forma alguma,
história para crianças, mas era isso que fazia com que os meninos o
respeitassem tanto. Isso e todo seu jeito estranho de se vestir e aparecer e
desaparecer da forma como bem entendia.
O silêncio
permaneceu incomodamente por um longo tempo. A lua já brilhava um pouco mais
forte atrás do Reverendo Moon, quando um dos garotos quebrou o silêncio:
- Por que a fada roubava os dentes das pessoas?
A pergunta foi apoiada pela forma como os outros meninos
respiraram e se acomodaram melhor na areia. Agora o reverendo começaria a
falar. Era sempre demorado para ele começar a falar sobre alguma coisa, e
muitas vezes o que ele falava nada tinha a ver com o que os meninos esperavam
que ele fosse falar. Mas dessa vez ele quis responder:
- A fada era uma garota problemática e muito triste por
dentro. Ela cresceu e se tornou uma pessoa má, que não conseguia sentir prazer
em coisa nenhuma da vida. Vejam bem... Você gosta de jogar futebol, Wagner?
O leitoso assustou-se com a forma que a pergunta foi feita
diretamente para ele. Não sabia que o reverendo o conhecia pelo nome.
- E-e-eu gosto
sim, re-reverendo. – e percebeu que mais alguém se aproximava do grupo com
passos rápidos. Era uma garota da mesma idade deles. Antes que o reverendo
voltasse a falar, a menina largou-se no chão e, mostrando que já estava ouvindo
a conversa desde o começo, definiu a seu modo:
- A fada era
uma assombração malvada que queria fazer mal aos meninos que fizessem coisas
más. Ela tinha chorado quando perdeu os dentes. E ela foi maltratada. E ela
morreu sem dentes. Por isso ela sempre vai atrás das pessoas para poder roubar
um dente.
Por um momento todos os meninos ficaram
quietos. Até que Berry, um moreno de olhos espertos começou a rir e outros o
acompanharam.
- Garota, você
é mais tola do que o próprio leitoso. Nem ele diria uma besteira dessas.
- Então fale
você, Berry! Por que a fada roubava dentes?
Berry se virou
para a garota e analisou-a. Ela tinha cara mesmo de ser tão tola quanto o
leitoso, mas era mil vezes mais bonitinha.
- Eu sei por
que ela fazia isso. A fada roubava dentes porque este era um costume em sua
terra natal. Meu pai me disse que há muitos e muitos anos, antes do
quase-apocalípse, os humanos roubavam dentes de mamutes. Os dentes dos mamutes
tinham um valor alto, assim como essa pérola que você usa no cabelo. Isto é, se
sua pérola for de verdade.
- O que são mamutes? – perguntou Wagner, o leitoso.
Ninguém ali ouvira falar sobre mamutes.
- Mamutes são
elefantes gigantes. – respondeu Berry.
- Na verdade
os humanos roubavam os dentes dos mamutes para guardá-los como símbolo de
poder. – interrompeu Haven, um garoto de cabelos claros e olhos de longos
cílios femininos. – E você nem pode saber de nada disso, Berry, pois não estava
lá.
- Posso ter
estado. – respondeu Berry de imediato.
- Se estava,
eu não o vi. – disse Haven em tom sereno.
Seguiram-se
algumas risadas e Berry falou:
- Deixem o
Haven, ele é um lunático.
Haven encarou
o garoto com seus olhos azuis tão frios, que fez o menino se encolher com medo.
Até Wind sentiu um frio percorrer-lhe pelo corpo. Haven podia ser lunático, mas
sabia como intimidar as pessoas.
Fez-se mais um
momento de silêncio e essa foi a brecha para o reverendo poder voltar a falar:
- Quem é você
que acabou de chegar? – ele se dirigia à garota que o interrompera minutos
atrás.
- Meu nome é Hannah.
– respondeu a garota enquanto cruzava os braços para se proteger de uma friagem
que chegara abruptamente.
- Ah, sim. Hannah.
Lembro de você na última vez que estive com os meninos. Você não se aproximou
do círculo, mas estava prestando atenção no que falávamos. Tudo o que falamos
aqui não deve ser falado com quem nunca esteve no círculo. Essa é uma regra que
devemos seguir. Nós falamos de segredos e falamos de coisas perigosas. Mas eu
sei que você é uma menina corajosa. Conheceu seu pai? Não conheceu. Ele foi um
homem muito corajoso. Bem, um dia vou lhe contar sobre ele.
Hannah nunca
ouvira falar do pai. Sabia apenas que sua mãe era uma louca varrida e cheia de
namorados. A mãe nunca falava de seu pai, e tudo que Hannh descobriu sobre ele foram
coisas sem sentido. Ouvira dizer que o pai era mecânico, ouvira que era
professor, pesquisador e mendigo. A única coisa que não mudava em cada história
era a parte em que o interlocutor mudava o tom de voz e dizia “Mas ele era um
homem muito inteligente e honesto”. Além disso, para cada história seu pai
tinha um nome diferente: era Paul, John, Robert, Billy, Been e até Martín, um
nome mais comum na América média. Quando Hannah pensava no pai Martín, ela o
imaginava com longos bigodes inteligentes, tocando um instrumento gritante de
cordas finas e melodia honesta. Pois essas eram suas maiores qualidades dele,
embora agora ela pudesse adicionar “corajoso” ao repertório de qualidades do
homem que embuchara sua mãe.
- Nenhum de vocês
está completamente errado. – voltou a falar o Reverendo Moon. – Quando falamos da fada não é como se estivéssemos falando apenas
deste conto específico. Tudo isso tem um laço forte com a cidade de Etion.
Entendam. Estas são estórias que não florescem na cabeça de qualquer adulto.
Mas vocês podem compreender... Houve um homem, um adulto, que viveu há bem
pouco tempo uma situação singular. Gostaria de lhes falar sobre ele hoje. Sempre que lhes conto minhas histórias eu não estou
falando apenas de pessoas e seus casos extraordinários. O que eu falo é sobre o
sobrenatural e sobre a regularidade que o sobrenatural passeia pelas ruas e pela história de Etion. Eu posso dizer que a
última aparição da fada vermelha foi há muito tempo, talvez antes da aparição
do navegador das dunas. No entanto, existem indícios sérios que de tempos em
tempos a fada retorna. É assim que o sobrenatural finca
suas raízes em Etion. Talvez exista um ciclo... Não, não vou me aprofundar nisso... – o
reverendo respirou profundamente com preocupação. Wind pôde perceber como todas
aquelas conversas eram importantes para o reverendo. Wind queria falar alguma
coisa, mas apenas observou-o e ficou calado. Logo o reverendo prosseguiu com
palavras diretas e quase proféticas:
- Etion caminha
para um lado escuro. Uma gigantesca universidade está se instalando na parte
alta da cidade. Em poucos anos a universidade trará milhares de novos
habitantes para a cidade. Etion se tornará uma cidade muito grande e ficará
muito mais perigosa se não existir pessoas que possam compreender os mistérios
que acontecem aqui... Etion não é uma cidade comum. Não é como as outras
cidades que se formaram após o quase-apocalípse de séculos atrás. Etion é uma
cidade com vontades sombrias, governada por algo que ainda não compreendemos. Não
é difícil perceber isso. Muitos de nós já percebemos, mas custamos a acreditar...
Talvez Etion se torne um caos nos anos que seguirão.
Sabendo disso estou reunindo vocês e narrando alguns contos. Estes podem
parecer contos aleatórios, mas são noções introdutórias para o que vocês devem aprender,
guardar, e transmitir para outros, quando for o momento certo. – o reverendo
parou e fixou o olhar em algum ponto além de uma grande concha avermelhada que
estava no chão a alguns metros.
Wind percebeu
que o reverendo estava apenas olhando para dentro de si mesmo e refletindo.
Talvez ele não percebesse o quão jovem eram seus interlocutores, ou se sabia
não se importava. Foi nesse momento que Wind decidiu que acreditava no homem.
Decidiu que o reverendo falava sobre coisas sérias, embora nem mesmo ele
compreendesse bem a natureza delas e dos mistérios que rondavam a velha Etion.
- Crianças. –
disse o reverendo em um tom mais relaxado. – Hoje vou contar uma história
recente. Ocorreu há dois anos e alguns de vocês se lembram. Esta é a história
da Atropelada.
continua...