09 dezembro 2012 2 comentários

O Caso Gabriela Morrison - Capítulo III




 O Caso Gabriela Morrison (Capítulo 3)

 

Os Fundadores de Etion

“... Todos os anos eram feitos rituais que celebravam o aniversário da cidade. Porém, o reverendo Moon contava que os fundadores da cidade eram pessoas misteriosas, com objetivos que iam além da criação de uma sociedade durável e eficiente. Eles faziam experiências sigilosas e cultuavam uma espécie de deus ressurgida após o Quase Apocalipse”.



        Ocasionalmente o reverendo Moon fazia suas súbitas aparições perto dos rochedos da praia da velha Etion. Ele se reunia com os garotos da cidade e contava histórias de enigmas e mistérios. Suas roupas e seus modos também mexiam com a criatividade das crianças. Usava roupas longas e escuras, e um capuz que dificultava ver-lhe o rosto. Suas reuniões começavam sempre nos finais de tarde e se estendiam até tarde da noite, além do horário que as crianças deveriam estar fora de casa.
        Wind gostava de ficar até mais tarde. Quando todos os amigos se iam, Wind se sentava nos rochedos e ficava imaginando como haviam sido os fatos narrados pelo reverendo Moon. Imaginava os personagens, os lugares, as cores e os odores das coisas. Às vezes, retirava um caderno e uma caneta de sua mochila, e punha-se a escrever sobre o que ouvira naquele dia. Wind gostava, especialmente, de pensar e escrever sobre o surgimento da cidade. Desde que acontecera a catástrofe planetária do Quase Apocalipse, o mundo havia se reorganizado de forma desordenada. Porém, segundo a lenda – e assim dizia o reverendo Moon – Etion foi fundada por um hermético grupo de médicos, filósofos e cientistas sobreviventes do grande desastre. O grupo, juntamente com mulheres, crianças e honestos trabalhadores braçais, escolheu o local e se instalou ali, criando um vilarejo prático e autossustentável, que dias depois tomaria o nome de Etion.
        Nas primeiras décadas os habitantes de Etion sobreviveram com alimentos e recursos naturais, enquanto o grupo de intelectuais trabalhava para desenvolver tecnologias semelhantes às que eram usadas antes do Quase Apocalipse. No entanto, o vilarejo pouco evoluiu tecnologicamente nestas primeiras décadas. A população aumentava consideravelmente devido à aparição de novos sobreviventes, que chegaram por terra e por mar. Seus relatos eram muito diferentes entre si, mas algumas coisas se mantinham em todos eles: os estragos da grande catástrofe eram incomensuráveis no mundo todo, a energia elétrica já havia sido reelaborada, ainda que insuficiente, em quase todo lugar, mas não havia meios de comunicação e os conceitos de lei, ética e moral praticamente não existiam mais. A violência e a lei do mais forte pareciam vigorar em todos os cantos do planeta.
        Mas não em Etion.
        Em Etion, o grupo de intelectuais fundadores da cidade criou uma democracia fundamentada em poucas, mas significativas, leis. Também foram criados os chamados “grupos de reuniões, ensino e aprendizagem coletivos”. Ali eram debatidos temas sociais, econômicos, filosóficos, místicos e existenciais de suma importância para o desenvolvimento da cidade, além de temas pertinentes sobre saúde, educação e qualidade de vida dos habitantes.
        Todos os anos eram feitos rituais que celebravam o aniversário da cidade. O evento era marcado pelo próprio ritual e pela seguinte festança regada pela fartura de bebida e comida.
        Porém, – ainda segundo a lenda – o reverendo Moon contava que os fundadores da cidade não eram, na verdade, aquilo que se propunham a ser. Eram pessoas misteriosas, com objetivos que iam além da criação de uma sociedade durável e eficiente. Eles faziam experiências sigilosas e cultuavam uma espécie de deus ressurgida após o Quase Apocalipse.
        Esses e outros mistérios haviam sido descobertos em registros de diários de antigos habitantes, entretanto, tudo que se sabia sobre os intelectuais fundadores de Etion, era muito pouco. Relatos de reuniões e rituais secretos eram constantes, embora faltassem informações sobre o conteúdo desses encontros.

        Hoje Etion era uma cidade pequena, com apenas alguns milhares de habitantes e alguns mistérios que geralmente passavam desapercebidos. Mas já era possível obter toda a tecnologia de antes do Quase Apocalipse, e também algumas coisas a mais. As maiores novidades eram importadas das grandes e longínquas metrópoles. Mas logo muita coisa viria a mudar. Segundo o próprio reverendo Moon, todo o controle sócio-cultural de Etion estava em perigo. Essa perturbação da ordem de Etion aconteceria invariavelmente devido à colossal universidade de Foxwoods e a gigantesca horda de habitantes que chegaria a Etion. E era isso o que mais atormentava o reverendo Moon.

        Contudo, hoje, o reverendo estava ali especificamente para contar sobre algo que havia acontecido há poucos anos atrás. Ele contaria a história da Atropelada. Wind já tinha ouvido comentários a respeito da Atropelada e o Escritor Louco, mas ouvir essa história nas palavras do reverendo lhe parecia algo muito mais excitante, e um dia ele deveria escrever sobre isso, num dia lento e ensolarado em sua cidade natal, quando sua idade estivesse avançada e tudo que lhe sobrasse fosse as lembranças do tempo em que viveu em Etion, e os dias em que viveu com Gabriela Morrison.

                                                                                                           Continua...
25 novembro 2012 2 comentários

O Caso Gabriela Morrison - Capítulo II


Moon


“...Enquanto a confusão aumentava, um senhor vinha se aproximando lentamente em seu traje sombrio. Usava um escuro casaco sobretudo acompanhado de um grande capuz que lhe cobria parte do rosto... O reverendo era um homem velho, mas de aparência forte. Ele tinha o rosto fino com maxilares duros e olhos carregados. Costumava se reunir com as crianças ocasionalmente ao pôr do sol e sempre lhes contava uma história... A lua já brilhava um pouco mais forte  atrás do Reverendo quando um dos garotos quebrou o silêncio...


        Era final de uma tarde de verão em Etion. O sol se punha com seus raios avermelhados no longínquo horizonte do mar. As ondas se quebravam compassadas e se arrastavam cada vez mais longe na orla da praia. Enquanto isso a lua nova surgia discretamente como um sorriso amarelo no céu colorado. As crianças jogavam bola na areia alguns metros acima. Wind recebeu a bola no campo de ataque, ultrapassou o lateral com velocidade, desviou do zagueiro e aproximou-se da zona de perigo para fazer o gol. Entre ele e o goleiro ainda restava um defensor que corria em sua direção com vigor. Wind escapou do último homem pelo lado e chutou cruzado. O chute saiu fraco e rasteiro. Alguém tinha atingido Wind no rosto no momento da finalização. Começou imediatamente uma discussão que durou algum tempo. Wind estava deitado no chão enquanto Dorian sorria dizendo que não havia sido ele quem o acertou. Enquanto isso dois garotos saíram na porrada. Thomas quis separar a briga e foi agredido por outros dois garotos. Wind levantou-se e pegou Dorian pela gola da camisa. Enquanto a confusão aumentava, um senhor vinha se aproximando lentamente em seu traje sombrio. Usava um escuro casaco sobretudo acompanhado de um grande capuz que lhe cobria parte do rosto. Ao enxergar o homem, Wind se distraiu e largou o colega. Esse descuido lhe custou um tapa, com a mão em forma de concha, bem no meio do ouvido. Aquilo doeu e deixou Wind desorientado por um instante, mas em seguida seu agressor estacou assustado e exclamou com a voz meio estrangulada:
        - Reverendo Moon!
As palavras foram curtas e não foram altas, mas foi o suficiente para que todos os meninos ouvissem e esquecessem o que estavam fazendo. John Lightner, que já havia liquidado dois, corou e abaixou a cabeça. Wagner, o leitoso, foi o primeiro a se sentar. Em seguida, Berry, Haven, Dorian, Thomas e todos os outros garotos foram se sentando em frente ao homem sombrio.
        O Reverendo Moon caminhou entre os garotos no chão e deu um toque no ombro de Wind ao passar do seu lado. O toque pareceu queimar-lhe o a clavícula como um ferro em brasas, mas ele sabia que não havia sido um toque forte assim. Teria sido um toque de repressão por ele ter sido o possível causador da briga? Ou seria isso um toque amistoso? Ou ainda, seria um toque casual que o reverendo poderia ter feito igualmente em qualquer outro da turma? Wind não conhecia muito bem o reverendo, mas se tinha uma coisa que havia aprendido é que o homem não fazia nada que não tivesse um significado. O reverendo era um homem velho, mas de aparência forte. Ele tinha o rosto fino com maxilares fortes e olhos carregados. Costumava se reunir com as crianças ocasionalmente ao pôr do sol e sempre lhes contava uma história. Ele aparecia do nada, contava histórias intrigantes e depois desaparecia por semanas ou meses. Em geral o reverendo contava histórias que remetiam aos primórdios da velha Etion e mistérios intrigantes sobre antigos e atuais moradores. Esses contos mexiam com o imaginário das crianças e os faziam pensar em bruxaria, feitiçaria, fantasmas, demônios, monstros, extraterrestes, e um sem número de coisas legais e assustadoras.
        Na última vez que apareceu, o reverendo contou sobre algo que deu o que falar. Ele havia falado sobre uma mulher muito má, que matava pessoas e roubavam-lhe os dentes. Essa mulher era, além de tudo, uma espécie de fada, de um jeito meio torto. Isso não era, de forma alguma, história para crianças, mas era isso que fazia com que os meninos o respeitassem tanto. Isso e todo seu jeito estranho de se vestir e aparecer e desaparecer da forma como bem entendia.
        O silêncio permaneceu incomodamente por um longo tempo. A lua já brilhava um pouco mais forte atrás do Reverendo Moon, quando um dos garotos quebrou o silêncio:
- Por que a fada roubava os dentes das pessoas?
A pergunta foi apoiada pela forma como os outros meninos respiraram e se acomodaram melhor na areia. Agora o reverendo começaria a falar. Era sempre demorado para ele começar a falar sobre alguma coisa, e muitas vezes o que ele falava nada tinha a ver com o que os meninos esperavam que ele fosse falar. Mas dessa vez ele quis responder:
- A fada era uma garota problemática e muito triste por dentro. Ela cresceu e se tornou uma pessoa má, que não conseguia sentir prazer em coisa nenhuma da vida. Vejam bem... Você gosta de jogar futebol, Wagner?
O leitoso assustou-se com a forma que a pergunta foi feita diretamente para ele. Não sabia que o reverendo o conhecia pelo nome.
        - E-e-eu gosto sim, re-reverendo. – e percebeu que mais alguém se aproximava do grupo com passos rápidos. Era uma garota da mesma idade deles. Antes que o reverendo voltasse a falar, a menina largou-se no chão e, mostrando que já estava ouvindo a conversa desde o começo, definiu a seu modo:
        - A fada era uma assombração malvada que queria fazer mal aos meninos que fizessem coisas más. Ela tinha chorado quando perdeu os dentes. E ela foi maltratada. E ela morreu sem dentes. Por isso ela sempre vai atrás das pessoas para poder roubar um dente.
        Por um momento todos os meninos ficaram quietos. Até que Berry, um moreno de olhos espertos começou a rir e outros o acompanharam.
        - Garota, você é mais tola do que o próprio leitoso. Nem ele diria uma besteira dessas.
        - Então fale você, Berry! Por que a fada roubava dentes?
        Berry se virou para a garota e analisou-a. Ela tinha cara mesmo de ser tão tola quanto o leitoso, mas era mil vezes mais bonitinha.
        - Eu sei por que ela fazia isso. A fada roubava dentes porque este era um costume em sua terra natal. Meu pai me disse que há muitos e muitos anos, antes do quase-apocalípse, os humanos roubavam dentes de mamutes. Os dentes dos mamutes tinham um valor alto, assim como essa pérola que você usa no cabelo. Isto é, se sua pérola for de verdade.
        - O que são mamutes? – perguntou Wagner, o leitoso. Ninguém ali ouvira falar sobre mamutes.
        - Mamutes são elefantes gigantes. – respondeu Berry.
        - Na verdade os humanos roubavam os dentes dos mamutes para guardá-los como símbolo de poder. – interrompeu Haven, um garoto de cabelos claros e olhos de longos cílios femininos. – E você nem pode saber de nada disso, Berry, pois não estava lá.
        - Posso ter estado. – respondeu Berry de imediato.
        - Se estava, eu não o vi. – disse Haven em tom sereno.
        Seguiram-se algumas risadas e Berry falou:
        - Deixem o Haven, ele é um lunático.
        Haven encarou o garoto com seus olhos azuis tão frios, que fez o menino se encolher com medo. Até Wind sentiu um frio percorrer-lhe pelo corpo. Haven podia ser lunático, mas sabia como intimidar as pessoas.
        Fez-se mais um momento de silêncio e essa foi a brecha para o reverendo poder voltar a falar:

        - Quem é você que acabou de chegar? – ele se dirigia à garota que o interrompera minutos atrás.
        - Meu nome é Hannah. – respondeu a garota enquanto cruzava os braços para se proteger de uma friagem que chegara abruptamente.
        - Ah, sim. Hannah. Lembro de você na última vez que estive com os meninos. Você não se aproximou do círculo, mas estava prestando atenção no que falávamos. Tudo o que falamos aqui não deve ser falado com quem nunca esteve no círculo. Essa é uma regra que devemos seguir. Nós falamos de segredos e falamos de coisas perigosas. Mas eu sei que você é uma menina corajosa. Conheceu seu pai? Não conheceu. Ele foi um homem muito corajoso. Bem, um dia vou lhe contar sobre ele.
        Hannah nunca ouvira falar do pai. Sabia apenas que sua mãe era uma louca varrida e cheia de namorados. A mãe nunca falava de seu pai, e tudo que Hannh descobriu sobre ele foram coisas sem sentido. Ouvira dizer que o pai era mecânico, ouvira que era professor, pesquisador e mendigo. A única coisa que não mudava em cada história era a parte em que o interlocutor mudava o tom de voz e dizia “Mas ele era um homem muito inteligente e honesto”. Além disso, para cada história seu pai tinha um nome diferente: era Paul, John, Robert, Billy, Been e até Martín, um nome mais comum na América média. Quando Hannah pensava no pai Martín, ela o imaginava com longos bigodes inteligentes, tocando um instrumento gritante de cordas finas e melodia honesta. Pois essas eram suas maiores qualidades dele, embora agora ela pudesse adicionar “corajoso” ao repertório de qualidades do homem que embuchara sua mãe.
     - Nenhum de vocês está completamente errado. – voltou a falar o Reverendo Moon. – Quando falamos da fada não é como se estivéssemos falando apenas deste conto específico. Tudo isso tem um laço forte com a cidade de Etion. Entendam. Estas são estórias que não florescem na cabeça de qualquer adulto. Mas vocês podem compreender... Houve um homem, um adulto, que viveu há bem pouco tempo uma situação singular. Gostaria de lhes falar sobre ele hoje. Sempre que lhes conto minhas histórias eu não estou falando apenas de pessoas e seus casos extraordinários. O que eu falo é sobre o sobrenatural e sobre a regularidade que o sobrenatural passeia pelas ruas e pela história de Etion. Eu posso dizer que a última aparição da fada vermelha foi há muito tempo, talvez antes da aparição do navegador das dunas. No entanto, existem indícios sérios que de tempos em tempos a fada retorna. É assim que o sobrenatural finca suas raízes em Etion. Talvez exista um ciclo...  Não, não vou me aprofundar nisso... – o reverendo respirou profundamente com preocupação. Wind pôde perceber como todas aquelas conversas eram importantes para o reverendo. Wind queria falar alguma coisa, mas apenas observou-o e ficou calado. Logo o reverendo prosseguiu com palavras diretas e quase proféticas:
        - Etion caminha para um lado escuro. Uma gigantesca universidade está se instalando na parte alta da cidade. Em poucos anos a universidade trará milhares de novos habitantes para a cidade. Etion se tornará uma cidade muito grande e ficará muito mais perigosa se não existir pessoas que possam compreender os mistérios que acontecem aqui... Etion não é uma cidade comum. Não é como as outras cidades que se formaram após o quase-apocalípse de séculos atrás. Etion é uma cidade com vontades sombrias, governada por algo que ainda não compreendemos. Não é difícil perceber isso. Muitos de nós já percebemos, mas custamos a acreditar... Talvez Etion se torne um caos nos anos que seguirão. Sabendo disso estou reunindo vocês e narrando alguns contos. Estes podem parecer contos aleatórios, mas são noções introdutórias para o que vocês devem aprender, guardar, e transmitir para outros, quando for o momento certo. – o reverendo parou e fixou o olhar em algum ponto além de uma grande concha avermelhada que estava no chão a alguns metros.
        Wind percebeu que o reverendo estava apenas olhando para dentro de si mesmo e refletindo. Talvez ele não percebesse o quão jovem eram seus interlocutores, ou se sabia não se importava. Foi nesse momento que Wind decidiu que acreditava no homem. Decidiu que o reverendo falava sobre coisas sérias, embora nem mesmo ele compreendesse bem a natureza delas e dos mistérios que rondavam a velha Etion.       
        - Crianças. – disse o reverendo em um tom mais relaxado. – Hoje vou contar uma história recente. Ocorreu há dois anos e alguns de vocês se lembram. Esta é a história da Atropelada.

                                                                                                                                   continua...
28 outubro 2012 6 comentários

O Caso Gabriela Morrison - Prólogo (Capitulo I)


Wind 
"... Srta. Morrison foi amor à primeira vista. E à segunda. E à terceira. Depois já não era amor, era simplesmente a Gabriela: curiosidade e fascinação. Era preciso passar cada vez mais horas em sua companhia. Era preciso observar, registrar e anotar. E mesmo assim você seria sempre surpreendido uma e mais uma vez."
     

        Mais tarde, amadurecido, tudo o que desejava resumiu-se a alguns dias lentos e ensolarados na sua cidade natal, em uma casa na qual pudesse envelhecer e contar as estórias do tempo em que se mudou para Etion tudo o que passou com Gabriela Morrison.
        Como um ser humano, ainda nos primeiros anos de vida, Wind se apaixonou por Gabriela. Ela era apenas a garotinha do seu bairro e, provavelmente uma das primeiras pessoinhas de sexo oposto que ele conheceu. Ele não podia se culpar por isso e também não poderia dizer que Gabriela era irresistível, porque ela não era. Na verdade Wind mal se lembra dos seus primeiros anos de vida, mas graças ao seu cérebro curioso e investigativo, ele conseguiu ter uma ampla ideia dos seus primeiros anos. Para isso Wind se utilizava de fotos antigas, de pequenas e infinitas - pois nunca deixavam de surgir - remanescências, as quais ele chamava de "flashs de memória" e, principalmente, dos "relatos quase poéticos de quem convivi".
        Com esse pequeno material até que lhe foi possível desvendar muitas coisas. Foi assim que ele soube que sempre chorava quando seus pais o afastavam de Gabriela. Foi assim que soube que fez "casalsinho" com Gabriela numa apresentação da pré-escola. Foi assim que foi se lembrando das coisas que gostava, das coisas que eram ruins, dos sentimentos que eram agradáveis e dos sentimentos que eram terríveis de sentir... E foi assim que Wind soube que quando criança, foi um sonhador. Sonhava o belo, o indescritível. Tinha uma alma aberta a todos amores, todas minúcias de sentimentos. Seu olhar era belo e brilhante, e tudo era colorido por seu próprio ser, sua própria existência. Sua vida era como um quadro sem tinturas e sem molduras, pronta para recebê-lo com toda sua alegria.
        E Wind pintou cada verbo como quis, cada coisa que conheceu e que lhe foi apresentado. Era tudo novo para ele. Pincelou sem se poupar, sem poupar aos outros. Ora, era tudo tão sensacional, tão mutante, que pintou o fabuloso.
        Foi possível passar longos anos nessa confusão 'incessável' de coloridos rebeldes. Pintando criaturas monstruosas, outras eternamente afáveis, e outras apavorantes mesmo. E Wind sentiu medo pela primeira vez. Confrontou com todos seus monstros e suas belas criaturas com dores, as piores do mundo. Repincelava cada borra que se mostrassem defeituosas. tudo já era duro, repleto de juízos, carregado de emoções - as mais 'incompreendíveis'.
        Cometeu erros quando pintou o amor - pintou-o como em seus sonhos de menino. Este se mostrou de uma perfeição indescritível, 'indizível' mesmo: "as virtudes que mais gosto e defeitos que mais venero". A mais terrível de suas criaturas! O amor, esta criatura tão perfeita, o fascinava e o atraia num escuro cego multicor. Tão absorvente sua austeridade que poucas vezes pôde achá-lo. E Wind encontrou-o em Gabriela.
        Passou a escrever sem limitação alguma. Pintou toda a escuridão a bel prazer. Reinventou cores, sentidos e amou loucamente - com a intensidade de um louco mesmo. E foi feliz desse jeito cá e lá. Mas acontece que sua escuridão agora ia e voltava, e quando ia novamente, não o deixava só, pois ele tinha uma imensidão toda colorida com suas tintas de infância.
        Encantou-se com sua nova capacidade de abstrair, de elaborar. Pegou apressado suas tintas e seu pincel e saiu correndo por suas ruas incríveis e alamedas secretas - como um louco, como um bêbado - rumo a um infinito de cores que ainda nem conhecia. E Wind estava dentro de uma cidade escura que ganhava vida a cada respiração de seus habitantes.
        Etion crescia cada vez mais e seu terreno também expandia. O que, a princípio, era uma cidadezinha de velhos e pescadores, tornava-se agora uma quase metrópole do mundo moderno. Os jovens pintavam seus cabelos e partilhavam do niblet, uma nova droga sintética de prazeres ilimitados.
       

        Etion era uma cidade litorânea, cujo pilar da existência era a grande universidade Foxwoods construída muito tempo após a queda dos famosos cassinos Foxwoods, na alta América. Em conseqüência da grande universidade e a aglomeração de jovens, a cidade se tornou monumento do sexo, das drogas e da música trance. Foram criadas diversas tribos urbanas, rivais em suas crenças, músicas e estilos. A febre pelas casas de shows e a venda de novas drogas sintéticas psicodélicas, ainda não liberadas por lei, aumentaram a criminalidade e principiaram o cenário obscuro e caótico de Etion. A população aumentou significativamente e a cidade foi dividida em duas: a cidade alta e a antiga cidade baixa. Posteriormente, elas ficaram conhecidas como Nova Etion e Velha Etion.
        Enquanto a Cidade Nova era tomada pelas festas, pelas cores e pelas luzes, a Velha Etion era a região pacata dos velhos e dos pescadores.

        Wind contaria sobre as duas Etion: a cidade nova e a cidade velha. Contaria sobre a grande universidade Foxwoods, sobre a praia, a caverna e a ilha. Contaria sobre o alojamento onde morou, sobre o Hotel Palace, onde conheceu Gabriela ainda na infância, e sobre a mansão do escritor louco. Contaria sobre a casa noturna, a estrada perdida e as estórias incríveis que ouvia do Reverendo Moon, quando se reunia com os colegas nos finais de tarde. Contaria sobre o moinho, o porto dos pescadores e a fada assombrada que se desfez em uma explosão de borboletas de sangue.
        Wind contaria tudo o que havia para se lembrar sobre os hábitos e costumes de Etion. Deveria falar do caos da cidade nova e da tranqüilidade da cidade velha. E até mesmo das noites bêbadas nas quais ele descia aos rochedos da Velha Etion para ver o sol nascer.
        Mas antes, deveria falar sobre Gabriela Morrison, a garota mais intrigante que conheceu. A menina trazia o sol da sua cidade de verão. Ela tinha os olhos mais vivos e sorriso mais gentil. Talvez tudo que Wind queria contar fosse somente sobre Gabriela. Sobre a forma como ela viveu e a forma como morreu. E talvez assim ele conseguisse encontrar paz em seu interior amargo. Assim, ele viria a se lembrar que em Etion as cores de verão subiam aos cabelos, enquanto o cinza e a escuridão preenchiam por dentro. E em Etion, prazeres eram alimentos da alma. Ali era possível viver realidades homeomorfas impossíveis de não serem contadas. E Wind não poderia deixar de contar sobre o navegador das dunas de areia e o Lunático de Era, um aficionado pelo medieval que vivia dois períodos da história, travando verdadeiros duelos existenciais.
        Foram as personalidades assim excêntricas que montaram a cidade de Etion. Ou foi o contrário o que aconteceu, como diria a Sra. Patterson. A sra.Patterson era uma velha considerada curandeira e sábia. Ela era mãe do Dr. Robert, o maior bon vivant da velha Etion. Um médico rico e biscateiro. Foi ele quem trouxe à luz o irmão de Gabriela. E na época houve boatos de que ele mesmo era o pai da criança, embora a Sra. Morrison fosse casada há mais de vinte anos.
        Às vezes Wind sonhava que poderia ter vivido realmente um romance com Gabriela, assim como o Lunático de Era fantasiava sobre sua amada Nathalie, sobre as lutas anglo-saxônicas, sobre o malvado tio Octus e os alquimistas, malabaristas, artistas e contrabandistas... Assim, Wind poderia ter mudado o rumo da história de Etion, poderia ter sido participativo e influente. Poderia ter sido político, jornalista, traficante... Poderia ter sido como Gabriela, muito mais intenso. Mas não foi assim que aconteceu. Àquele tempo Wind só sabia observar e observar.
        Nesse ínterim a cidade agiu por si mesma, o teatro ganhou vida - assim como nos contos do Lunático -  e o sol de verão se apagou para sempre da vida de Wind.

                                                                                                                     continua...
 
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