25 novembro 2012 2 comentários

O Caso Gabriela Morrison - Capítulo II


Moon


“...Enquanto a confusão aumentava, um senhor vinha se aproximando lentamente em seu traje sombrio. Usava um escuro casaco sobretudo acompanhado de um grande capuz que lhe cobria parte do rosto... O reverendo era um homem velho, mas de aparência forte. Ele tinha o rosto fino com maxilares duros e olhos carregados. Costumava se reunir com as crianças ocasionalmente ao pôr do sol e sempre lhes contava uma história... A lua já brilhava um pouco mais forte  atrás do Reverendo quando um dos garotos quebrou o silêncio...


        Era final de uma tarde de verão em Etion. O sol se punha com seus raios avermelhados no longínquo horizonte do mar. As ondas se quebravam compassadas e se arrastavam cada vez mais longe na orla da praia. Enquanto isso a lua nova surgia discretamente como um sorriso amarelo no céu colorado. As crianças jogavam bola na areia alguns metros acima. Wind recebeu a bola no campo de ataque, ultrapassou o lateral com velocidade, desviou do zagueiro e aproximou-se da zona de perigo para fazer o gol. Entre ele e o goleiro ainda restava um defensor que corria em sua direção com vigor. Wind escapou do último homem pelo lado e chutou cruzado. O chute saiu fraco e rasteiro. Alguém tinha atingido Wind no rosto no momento da finalização. Começou imediatamente uma discussão que durou algum tempo. Wind estava deitado no chão enquanto Dorian sorria dizendo que não havia sido ele quem o acertou. Enquanto isso dois garotos saíram na porrada. Thomas quis separar a briga e foi agredido por outros dois garotos. Wind levantou-se e pegou Dorian pela gola da camisa. Enquanto a confusão aumentava, um senhor vinha se aproximando lentamente em seu traje sombrio. Usava um escuro casaco sobretudo acompanhado de um grande capuz que lhe cobria parte do rosto. Ao enxergar o homem, Wind se distraiu e largou o colega. Esse descuido lhe custou um tapa, com a mão em forma de concha, bem no meio do ouvido. Aquilo doeu e deixou Wind desorientado por um instante, mas em seguida seu agressor estacou assustado e exclamou com a voz meio estrangulada:
        - Reverendo Moon!
As palavras foram curtas e não foram altas, mas foi o suficiente para que todos os meninos ouvissem e esquecessem o que estavam fazendo. John Lightner, que já havia liquidado dois, corou e abaixou a cabeça. Wagner, o leitoso, foi o primeiro a se sentar. Em seguida, Berry, Haven, Dorian, Thomas e todos os outros garotos foram se sentando em frente ao homem sombrio.
        O Reverendo Moon caminhou entre os garotos no chão e deu um toque no ombro de Wind ao passar do seu lado. O toque pareceu queimar-lhe o a clavícula como um ferro em brasas, mas ele sabia que não havia sido um toque forte assim. Teria sido um toque de repressão por ele ter sido o possível causador da briga? Ou seria isso um toque amistoso? Ou ainda, seria um toque casual que o reverendo poderia ter feito igualmente em qualquer outro da turma? Wind não conhecia muito bem o reverendo, mas se tinha uma coisa que havia aprendido é que o homem não fazia nada que não tivesse um significado. O reverendo era um homem velho, mas de aparência forte. Ele tinha o rosto fino com maxilares fortes e olhos carregados. Costumava se reunir com as crianças ocasionalmente ao pôr do sol e sempre lhes contava uma história. Ele aparecia do nada, contava histórias intrigantes e depois desaparecia por semanas ou meses. Em geral o reverendo contava histórias que remetiam aos primórdios da velha Etion e mistérios intrigantes sobre antigos e atuais moradores. Esses contos mexiam com o imaginário das crianças e os faziam pensar em bruxaria, feitiçaria, fantasmas, demônios, monstros, extraterrestes, e um sem número de coisas legais e assustadoras.
        Na última vez que apareceu, o reverendo contou sobre algo que deu o que falar. Ele havia falado sobre uma mulher muito má, que matava pessoas e roubavam-lhe os dentes. Essa mulher era, além de tudo, uma espécie de fada, de um jeito meio torto. Isso não era, de forma alguma, história para crianças, mas era isso que fazia com que os meninos o respeitassem tanto. Isso e todo seu jeito estranho de se vestir e aparecer e desaparecer da forma como bem entendia.
        O silêncio permaneceu incomodamente por um longo tempo. A lua já brilhava um pouco mais forte atrás do Reverendo Moon, quando um dos garotos quebrou o silêncio:
- Por que a fada roubava os dentes das pessoas?
A pergunta foi apoiada pela forma como os outros meninos respiraram e se acomodaram melhor na areia. Agora o reverendo começaria a falar. Era sempre demorado para ele começar a falar sobre alguma coisa, e muitas vezes o que ele falava nada tinha a ver com o que os meninos esperavam que ele fosse falar. Mas dessa vez ele quis responder:
- A fada era uma garota problemática e muito triste por dentro. Ela cresceu e se tornou uma pessoa má, que não conseguia sentir prazer em coisa nenhuma da vida. Vejam bem... Você gosta de jogar futebol, Wagner?
O leitoso assustou-se com a forma que a pergunta foi feita diretamente para ele. Não sabia que o reverendo o conhecia pelo nome.
        - E-e-eu gosto sim, re-reverendo. – e percebeu que mais alguém se aproximava do grupo com passos rápidos. Era uma garota da mesma idade deles. Antes que o reverendo voltasse a falar, a menina largou-se no chão e, mostrando que já estava ouvindo a conversa desde o começo, definiu a seu modo:
        - A fada era uma assombração malvada que queria fazer mal aos meninos que fizessem coisas más. Ela tinha chorado quando perdeu os dentes. E ela foi maltratada. E ela morreu sem dentes. Por isso ela sempre vai atrás das pessoas para poder roubar um dente.
        Por um momento todos os meninos ficaram quietos. Até que Berry, um moreno de olhos espertos começou a rir e outros o acompanharam.
        - Garota, você é mais tola do que o próprio leitoso. Nem ele diria uma besteira dessas.
        - Então fale você, Berry! Por que a fada roubava dentes?
        Berry se virou para a garota e analisou-a. Ela tinha cara mesmo de ser tão tola quanto o leitoso, mas era mil vezes mais bonitinha.
        - Eu sei por que ela fazia isso. A fada roubava dentes porque este era um costume em sua terra natal. Meu pai me disse que há muitos e muitos anos, antes do quase-apocalípse, os humanos roubavam dentes de mamutes. Os dentes dos mamutes tinham um valor alto, assim como essa pérola que você usa no cabelo. Isto é, se sua pérola for de verdade.
        - O que são mamutes? – perguntou Wagner, o leitoso. Ninguém ali ouvira falar sobre mamutes.
        - Mamutes são elefantes gigantes. – respondeu Berry.
        - Na verdade os humanos roubavam os dentes dos mamutes para guardá-los como símbolo de poder. – interrompeu Haven, um garoto de cabelos claros e olhos de longos cílios femininos. – E você nem pode saber de nada disso, Berry, pois não estava lá.
        - Posso ter estado. – respondeu Berry de imediato.
        - Se estava, eu não o vi. – disse Haven em tom sereno.
        Seguiram-se algumas risadas e Berry falou:
        - Deixem o Haven, ele é um lunático.
        Haven encarou o garoto com seus olhos azuis tão frios, que fez o menino se encolher com medo. Até Wind sentiu um frio percorrer-lhe pelo corpo. Haven podia ser lunático, mas sabia como intimidar as pessoas.
        Fez-se mais um momento de silêncio e essa foi a brecha para o reverendo poder voltar a falar:

        - Quem é você que acabou de chegar? – ele se dirigia à garota que o interrompera minutos atrás.
        - Meu nome é Hannah. – respondeu a garota enquanto cruzava os braços para se proteger de uma friagem que chegara abruptamente.
        - Ah, sim. Hannah. Lembro de você na última vez que estive com os meninos. Você não se aproximou do círculo, mas estava prestando atenção no que falávamos. Tudo o que falamos aqui não deve ser falado com quem nunca esteve no círculo. Essa é uma regra que devemos seguir. Nós falamos de segredos e falamos de coisas perigosas. Mas eu sei que você é uma menina corajosa. Conheceu seu pai? Não conheceu. Ele foi um homem muito corajoso. Bem, um dia vou lhe contar sobre ele.
        Hannah nunca ouvira falar do pai. Sabia apenas que sua mãe era uma louca varrida e cheia de namorados. A mãe nunca falava de seu pai, e tudo que Hannh descobriu sobre ele foram coisas sem sentido. Ouvira dizer que o pai era mecânico, ouvira que era professor, pesquisador e mendigo. A única coisa que não mudava em cada história era a parte em que o interlocutor mudava o tom de voz e dizia “Mas ele era um homem muito inteligente e honesto”. Além disso, para cada história seu pai tinha um nome diferente: era Paul, John, Robert, Billy, Been e até Martín, um nome mais comum na América média. Quando Hannah pensava no pai Martín, ela o imaginava com longos bigodes inteligentes, tocando um instrumento gritante de cordas finas e melodia honesta. Pois essas eram suas maiores qualidades dele, embora agora ela pudesse adicionar “corajoso” ao repertório de qualidades do homem que embuchara sua mãe.
     - Nenhum de vocês está completamente errado. – voltou a falar o Reverendo Moon. – Quando falamos da fada não é como se estivéssemos falando apenas deste conto específico. Tudo isso tem um laço forte com a cidade de Etion. Entendam. Estas são estórias que não florescem na cabeça de qualquer adulto. Mas vocês podem compreender... Houve um homem, um adulto, que viveu há bem pouco tempo uma situação singular. Gostaria de lhes falar sobre ele hoje. Sempre que lhes conto minhas histórias eu não estou falando apenas de pessoas e seus casos extraordinários. O que eu falo é sobre o sobrenatural e sobre a regularidade que o sobrenatural passeia pelas ruas e pela história de Etion. Eu posso dizer que a última aparição da fada vermelha foi há muito tempo, talvez antes da aparição do navegador das dunas. No entanto, existem indícios sérios que de tempos em tempos a fada retorna. É assim que o sobrenatural finca suas raízes em Etion. Talvez exista um ciclo...  Não, não vou me aprofundar nisso... – o reverendo respirou profundamente com preocupação. Wind pôde perceber como todas aquelas conversas eram importantes para o reverendo. Wind queria falar alguma coisa, mas apenas observou-o e ficou calado. Logo o reverendo prosseguiu com palavras diretas e quase proféticas:
        - Etion caminha para um lado escuro. Uma gigantesca universidade está se instalando na parte alta da cidade. Em poucos anos a universidade trará milhares de novos habitantes para a cidade. Etion se tornará uma cidade muito grande e ficará muito mais perigosa se não existir pessoas que possam compreender os mistérios que acontecem aqui... Etion não é uma cidade comum. Não é como as outras cidades que se formaram após o quase-apocalípse de séculos atrás. Etion é uma cidade com vontades sombrias, governada por algo que ainda não compreendemos. Não é difícil perceber isso. Muitos de nós já percebemos, mas custamos a acreditar... Talvez Etion se torne um caos nos anos que seguirão. Sabendo disso estou reunindo vocês e narrando alguns contos. Estes podem parecer contos aleatórios, mas são noções introdutórias para o que vocês devem aprender, guardar, e transmitir para outros, quando for o momento certo. – o reverendo parou e fixou o olhar em algum ponto além de uma grande concha avermelhada que estava no chão a alguns metros.
        Wind percebeu que o reverendo estava apenas olhando para dentro de si mesmo e refletindo. Talvez ele não percebesse o quão jovem eram seus interlocutores, ou se sabia não se importava. Foi nesse momento que Wind decidiu que acreditava no homem. Decidiu que o reverendo falava sobre coisas sérias, embora nem mesmo ele compreendesse bem a natureza delas e dos mistérios que rondavam a velha Etion.       
        - Crianças. – disse o reverendo em um tom mais relaxado. – Hoje vou contar uma história recente. Ocorreu há dois anos e alguns de vocês se lembram. Esta é a história da Atropelada.

                                                                                                                                   continua...
 
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